28/01/04

Os meus mortos III

«O mau da Fita

Ontem "saltou-me a tampa" depois de horas infindas a ver a morte fulminante de um ser vivo.

Há três meses atrás, perdi o meu pai numa situação que identifico com aquela: o meu pai deve ter sorrido tal e qual Fehér (o meu pai sorria sempre!) e, a seguir, abandonou-me numa fracção de segundo...

Todos nós (minha Mãe, porque estava no andar de cima e poderia estar no de baixo; eu porque estava no Porto e poderia estar em Lisboa; os meus irmãos, porque estavam nos seus lares e poderiam, por um mero acaso, estar lá em casa de meus pais; os meus 5 filhos e 3 sobrinhos porque poderiam ter passado por lá 1 minuto antes; a restante família porque estava no aconchego do seu lar e poderia, por acaso, ter-lhes apetecido ir lá tomar o pequeno almoço; etc.) nos sentimos um pouco culpados pela morte de meu pai, sozinho na sala de sua casa.

Meu pai morreu sozinho e todos nós, cada um à sua maneira, nos culpamos dessa solidão.

Todavia, se viesse um(a) médico(a) dizer-nos que tudo poderia ter sido diferente se algum de nós ali estivesse presente, como encararíamos nós essa morte?

Acordaríamos de noite (e eu faço-o amiúde...) com o sentimento de culpa por aquilo que poderia ter sido uma hipótese?

É esse o prazer mórbido que um(a) médico(a) tem ou deve ter? O de afirmar que tudo poderia ser diferente "se"?


Fehér faleceu, fulminado e em directo para milhões de pessoas...

Meu pai faleceu, fulminado e no resguardo do seu próprio ser...

Aquela repetição ao infinito da imagem de Fehér foi a imagem da morte de meu pai e que não presenciei (e repetida ao infinito do infinito com que me deparo inúmeras vezes ao acordar sobressaltado).

Mas, ao ir contra a corrente dos abutres, rapidamente me apercebi de que estou longamente habituado a ser "o mau da fita".

Em 79, Fonseca e Costa rodava um filme que viria a ser o "Kilas, o Mau da Fita" e, de repente, faltou uma "pastilha", isto é, um microfone especial para captar sons.

A treta dos "Boletins de Importação" emperravam a vinda da Alemanha da tal "pastilha": eram os artigos pautais que não acertavam com o produto, era ali a Rua de S. Mamede que pedia mais facturas e mais justificações da importação, era, enfim, a eterna máquina burocrática que adiava por semanas a continuação do rodar do filme.

Nessa altura, como era casado com uma Assistente de Bordo da TAP e usufruía de viagens baratinhas, meu amigo João Carlos G. , assistente do Fonseca e Costa, telefonou-me e disse-me: "Eh pa´! Queres ir jantar a Frankfurt e trazer na candonga uma "pastilha" de que a gente precisa?"

Dois dias depois lá estava eu em Frankfurt, com a "pastilha" no bolso da bolsa e a jantar que nem um nababo.

Jantei, diverti-me à brava com uns casais alemães que falavam uma mistura de inglês e de espanholês, voltei num voo tardíssimo e passei na Portela pelo sítio de "Nada a declarar".

Uns dias depois vi e ouvi o Sérgio Godinho gravar a "Balada da Rita", vi a "pastilha" a funcionar com a Laidinha ( "petit non" da Adelaide) a ser violada aos gritinhos, e dei comigo a pensar: afinal, eu é que sou o mau da fita.

Conclusão: continuo sem nada a declarar e sem medo de declarar seja o que for.»


JR – 28.Jan.2004 • 02:11:13

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