O Telemóvel
mudou o amor?
Eu compreendo Pacheco Pereira na sua aversão aos telemóveis - a Vanessa não. Também eu, muitas vezes, não quero ser encontrada - a Vanessa quer, quase sempre. Na quinta-feira à noite, apetecia-me discutir o artigo que Pacheco escreveu no PÚBLICO sobre o novo "big brother" em que o monstrinho se tornou, em diversos cambiantes, mas ela não me deixou entrar por aí.
- O telemóvel mudou o amor.
Eu pretendia iniciar um discurso politicamente correcto sobre a imunidade do sentimento a qualquer conversão tecnológica. O amor é o amor. Ponto final (talvez).
- A paixão, estou a falar da paixão. Da sedução.
Também tentei começar um discurso politicamente correcto sobre a distinção entre o amor e a sedução, mas, mais uma vez, ela não deixou.
- Era tudo muito mais difícil antes dos telemóveis. As mensagens escritas vieram modificar a situação, para melhor. A trabalheira que dava iniciar processos de sedução antes da mensagens escritas! Disso já ninguém se lembra, da terrível dificuldade de localizar o outro, conhecer-lhe os caminhos, identificar-lhe as rotas, procurá-lo em lugares onde não estava e incessantemente provocar encontros fingindo que não eram provocados. Hoje, a questão está simplificada e muito bem. A escrita estimula a sedução e torna as "tampas" menos dolorosas.
- Menos dolorosas?
- Queres comparar, não? Queres comparar a dor de uma "tampa" olhos nos olhos a uma "tampa" através de uma mensagem escrita? Isto é válido para quem dá e para quem leva. É mais fácil dar uma tampa por SMS: não se responde. Ou responde-se com uma banalidade qualquer. O outro não nos vê, só nos lê. Lida-se melhor com uma "tampa" lida do que com uma "tampa" falada. Acho eu. O que isto veio facilitar a vida aos tímidos, que é quase toda a gente menos eu!
Talvez ela tenha razão. Enfim, até há coisas que não se dizem - só se escrevem, porque a escrita suporta melhor o território da ironia, do disparate, da paráfrase, do implícito. A escrita defende-nos: ninguém é o que escreve e isso pode ser sempre alegado em nossa defesa (se for o caso).
Mas o telemóvel não mudou o amor, o amor não muda por causa dos avanços tecnológicos.
- Isso é que muda. O telemóvel veio trazer a omnipresença aos amantes: o poder, a qualquer hora, permanentemente, entrar em contacto com o objecto de paixão é uma bênção. Isso muda o amor. Ama-se mais, acho eu. Ou, pelo menos, abre-se essa possibilidade.
A Vanessa tem muitas teorias, eu poucas. Mas, lembrei-me agora, só o telemóvel permite que numa fila de multibanco em Lisboa um sujeito envie uma mensagem a dizer "amo-te" a um sujeito que se balança numa rede no Alentejo e que, no instante em que carrega no "send", veja um sinal de "mensagem recebida". Numa rede do Alentejo, balançando, o sujeito diz, ao mesmo tempo, numa maravilhosa e única simultaneidade, "amo-te" ao sujeito da fila do multibanco em Lisboa. Só o telemóvel, quando cumpre essa simultaneidade misteriosa, prova que tu estás a pensar em mim exactamente no mesmo momento em que penso em ti. Com o "mail" isto também é possível, mas raramente o levamos para a bicha do multibanco.
Por ANA SÁ LOPES, Jornalista, PÃO E ROSAS, Domingo, 14 de Novembro de 2004, in Público
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(Magritte)/"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW
1 comentário:
«É mais fácil dar uma tampa por SMS: não se responde. Ou responde-se com uma banalidade qualquer.»
...e quem diz por SMS diz por mail, ou por msg num sistema de comentários...as novas tecnologias a facilitar o(a)s "cobardes"...:->
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