04/11/04

'so quietly deep in my heart'

«Estava farta de ser humana, de se cansar a provar quem era e de se cansar ainda mais a procurar alguém que a amasse assim, por nada. Escondia.-se nos números, ria-se dos poemas perdidos nos diários de menina. Sabia agora que a indeterminação atinge a raiz de todos os cálculos e já não esperava nada daquele congresso de informática. Podia começar a envelhecer comodamente. Do amor guardava os destroços costumeiros: hábitos ou hálitos decompostos pelas marés, lumes que se gastam comoe velas de circunstância. And suddenly.
Depois, só um poema de Sophia aberto sobre a mesa de cabeceira dela. 'Terror de te amar/num sítio tão frágil como o Mundo./ Mal de te amar neste lugar de imperfeição/ Onde tudo nos quebra e emudece/ Onde tudo nos mente e nos separa.'
Ela diz que quer esquecer, mas traz cada fragmento dele colado ao corpo como uma bóia de salvação. A memória mente ao tempo. Impartilhável, imortal, o cinema do segredo. Um filme encravado, ao arrepio dos dias, debaixo da pele.
Em horas de maior insuportabilidade ela acusa a dispersão do mundo. Porque é perigoso que o ódio ganhe a intensidade da paixão que o gera. Pode morrer-se de humilhação de odiar sem descanso(...)
Pelo menos consola pensar que há um tirano qualquer, uma força maior a moldar a maldade humana. (...)
Nunca mais houve ninguém. Aquele amor apagou o mundo. Quando, muitas lágrimas depois, ressuscitámos, estávamos sozinhos. O luto do grande amor torna-nos apenas numa pessoa. E ser uma pessoa é muito pouco para quem já foi nada. Para quem já deu tudo. Jurámos que nunca mais. Assim não. Nem pensar. 'Não te posso dar nada', dizem os amantes uns aos outros depois de terem dado tudo. O nada é aquilo que nos lembra aos outros, quando morremos de uma das múltiplas mortes que podemos ter para os outros. Agora contamos a história tim-tim por tim-tim. Mas sobra sempre um tuntun. E se ele voltasse? Sim. Se? Chiu.
Deixemos as meninas brincar com este baralho de papéis precários.
'É esta a carta que tu não vais ler. Se ao menos eu tivesse uma fotografia tua. Assim não te posso rasgar aos bocadinhos. If only. É soidade ou saudade que se escreve? Aqui ninguém sabe que tu existes. É por isso que não posso morrer aqui. Ninguém te dizia nada. Ficava sozinha de luz apagada.
(...)
Admirei-te sempre pelas outras coisa que tu eras sem alarde. Mas amava-te tanto e tão sem razão , so quietly deep in my heart, que não tinha mal fazer-me rendida quando tu me querias rendida. Ainda por cima era verdade. Se calhar foi essa verdade que te alarmou. Como é que se diz se calhar em português?
Querias que eu te sacudisse. Que eu te irritasse de vez em quando. Que eu fosse uma tough girl, une fille méchante ou lá como é que isso se diz na tua língua de fogo. Eu faria tudo por ti. Podia ter-te traído sem convicção. Podia até matar-te devagarinho, mansamente, numa daquelas conversas em que tu tentavas arrasar-me com os teus factos, datas e nomes. Quem é que quer saber da História de Portugal, país inclinado sobre a água? Mas tu precisavas dessas realidades confirmadas e eu não conseguia deixar de me comover com tanta e tão evidente vulnerabilidade.
Sentia já que te perdia, mas nada podia fazer a não ser pôr-te os trunfos todos na mão. Fiquei sem ti, claro. Mas amei-te com paixão e passion bastantes para a minha vida inteira. Fui em ti o melhor de mim. É esse o teu peso, a minha calada vingança.'
(...)
Apaixonaram-se pelas suas próprias sombras, pelos seus sonhos de si.»


A Instrução Dos Amantes, Inês Pedrosa


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(Magritte)/"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW

2 comentários:

Black Rider disse...

Existe algum lugar do amor que não seja o da imperfeição?

amok_she disse...

...pois, não sei..acho que, do amor, já nada sei...