OS QUE MORRERAM DE AMOR
Grande parte da literatura amorosa, e particularmente no domínio poético, aborda o ser ao nível da separação, na nostalgia de uma presente ou receada inquietude da queda. Nesse processo de ruptura ou privação, escreve-se na ilusão ou na iminência de uma falta. Isto deixando de parte a escrita do júbilo, porque também a há. Quando dialoga sobre o amor, interessa a Platão o estado, a vivência, como «demónio» que assegura um caminho (in)directo para o inteligível. É a alma universal, a seu ver, que anima e dá vida ao cosmos.
Talvez por isso, a relação entre amor e conhecimento seja fulcral no limite de uma total vulnerabilidade ou na sua condição metafórica. Não que a vivência do sentimento em si remeta para um qualquer saber teórico ou desague em conceitos abstractos mais ou menos elaborados, mas na sua expressão, no seu passado-futuro, acompanha o processo de significação de um rosto.
É nesse fio, o da experiência amorosa enquanto saber, da projecção para um (im)possível, que se detém este texto em torno da bela «Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao Século XIX», que a Assírio & Alvim editou recentemente, com selecção, organização, tradução, posfácio e notas de José Bento, atentíssimo tradutor de autores de língua castelhana de várias épocas (destaque especial para «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea» [1985], «Siglo de Oro» e «Renascimento e Barroco» [respectivamente, em 1993 e 1996], pela mão da mesma editora), grande conhecedor e o maior responsável pela divulgação da poesia espanhola em Portugal. Mais de 700 páginas percorrem, neste denso volume, dez séculos, das carjas e a épica medieval aos poetas que, no final do século XIX, princípios do século XX, anunciam o modernismo.
Seguindo a premissa do organizador de que não há, neste livro, «um propósito erudito nem didáctico», e tendo sido a escolha do conteúdo da antologia condicionada pela «capacidade de traduzir» de José Bento -- rigoroso no processo de investigação que acompanha esta sua actividade --, sugere-se um percurso não crítico (e muito menos cronológico) por esta obra, mas influenciado por uma inspiração afectiva. Seja na condescendência ou na ascendência, numa porta aberta para a alegria ou para o dolorismo. É no tormento, como substância necessária à existência, que Tristão reconhece a evidência da destruição do amor no dia em que este se concretizasse. E, no entanto, dir-se-ia na emoção de uma ausência que se procura uma imagem una da fugaz comunicação.
«Antes de ti eu morrerei: oculto/ no peito levo já/ o ferro com que tuas mãos abriram/ larga ferida mortal./ Antes de ti eu morrerei; meu espírito,/ num anseio tenaz,/ ante as portas da morte irá sentar-se,/ a esperar-te lá». Gustavo Adolfo Bécquer (1836-1870) -- cuja poesia marcou o modernismo hispânico e autores como Machado, Jiménez, Unamuno ou Alberti --, move-se aqui no território de um amorismo absoluto, de uma plenitude vazia aberta a uma eternidade. Neste poema ( «Rimas» ), já nem o tempo anima a memória, nem regista duração concreta -- duração no sentido bergsoniano --, tornando-se imóveis as lembranças ao lançar-se toda a esperança num futuro intemporal: «ali onde o sepulcro que se fecha/ abre uma eternidade/ tudo quanto nós dois sempre calámos/ teremos de falar».
O amor desinteressado ama sem medida. É moral amar (Kant não entendeu assim), mesmo que o amado não mereça esse amor, que, por ser sincero, possui um valor categórico. Fausto ou Dom Juan não pertencem à categoria dos que amam: «Porque voltais memória vazia,/ tristes lembranças do prazer perdido,/ a aumentar a ansiedade e a agonia/ deste deserto coração ferido?/ Ai!, que daquelas horas de alegria/ restou ao coração um só gemido,/ e o pranto que à dor os olhos negam/ são lágrimas de fel que a alma anegam!». Neste «Canto a Teresa», de José de Espronceda (1808-1842), com ecos da poesia romântica, o amor desfalece pelo seu excesso, na vertigem ardente de uma ficção passada. A manipulação desse sentido da perda surge aqui como ausência de morte, como luto de um absoluto agora desacreditado.
E é nessa «sede de uma intimidade» que a paixão afugenta uma qualquer «verdade», sabendo-se, contudo, na linha de um Max Scheler, que existe uma «ordem do coração». Na poética amorosa, prolonga-se, por vezes, o princípio de um sonho quase imaterial de «gozo e deleite», nele absorvendo-se sombras e luz de uma convulsiva história exterior. No desabamento do laço amoroso («Já dormem em seu túmulo as paixões/ o sono do nada», Rosália de Castro, 1837-1885), a morte toma-se, na dolorosa história de um caminho, não só «o drama da hora fatal» a que se refere Bachelard, mas a água que, em Poe, é um convite a morrer, a tal «melancolia que chora».
Dando testemunho de uma cristalização afectiva desmesurada, dessa incompreensível contradição dos mortos de amor -- que não admitem a ridícula comédia da não partilha do sentimento --, existem, ao longo da história da poesia de língua castelhana, páginas eficazes no uso da palavra, registando a circularidade da relação intersubjectiva. Amar é esse canto, mesmo quando se ama por dois: «Chorai meus prantos, chorai,/ chorai a mágoa de mim,/ chorai a minha liberdade/ que por amores perdi; /chorai o tempo passado/ passado sem galardão,/ chorai a triste aflição/ de eu estar morto e não finado» (Lope de Estúniga, 1414-1477/1480 [Cancionero de Estuñiga], também autor de versos de preocupações políticas e satíricas). Nesta «alta descida» e neste «pouco subir», é-se forçado a admitir a desafeição.
Cada um deseja ser amado por si próprio, qualquer motivo de interesse jamais suportará a continuidade virtuosa que logo resvalará em desfiguração («Pois não confieis no amor/das gentes, que são mortais/também nos bens temporais/que mais breves que rosais/perdem fresco verdor; e não são seus crescimentos/mais que jogo/menos durável que o fogo/de sarmentos» («Coplas para o Senhor Diego Arias de Ávila, Contador-Mor do Rei Nosso Senhor e do seu Conselho», Gómez Manrique, 1412-1490). A assunção do passado de um relacionamento no presente dissolve, por isso, a representação idealista que qualquer amor comporta. Ao considerar um Tu idêntico ao meu próprio Eu, estou a ser -- explica Max Scheler --, em primeiro lugar, vítima de uma ilusão sobre a realidade, e, em segundo, de uma ilusão que atinge o modo de ser.
Não sendo possível a fruição do amor como «a sensação do Tudo» (Hegel), e ao instalar-se o vazio, a memória passa a não registar a felicidade como outrora foi desejada, servindo de possibilidade a um recomeço solitário na articulação da separação. Quebrada a definição «ingénua» de Espinosa -- como lhe chamou Schopenhauer -- do sentimento amoroso como «alegria acompanhada da ideia de uma causa externa», abre-se o tempo do desejo metafísico, da «luz no rosto», como dele fala Emmanuel Levinas, que «só pode produzir-se num ser separado», suportado pela vivência de coisa tão árdua.
Impossível nesse caminho não falar dos místicos espanhóis -- aos quais José Bento tem dedicado tanto da sua actividade -- e do seu percurso de «escura contemplação e de secura»: «Vivo sem viver em mirn/ e tão alta vida espero/ que morro por não morrer». Nesta união ou ambiguidade entre o amor terrestre e o divino vivem muitos dos textos de Santa Teresa de Ávila (1515-1582) que nos «duros desterros», nesta «prisão», nestes «ferros», revela a humanidade de quem, ao não suportar a carga de uma vida que «não se goza estando viva», encontra o secreto mistério de um «castelo interior».
Lágrimas virão no território da vida e do amor. Mas «não pensemos que está tudo feito em chorando muito, mas deitemos mão ao trabalhar muito, e adquirir virtudes (...), e venham as lágrimas quando Deus as enviar, não fazendo diligências para as ter». Diz a autora de «Moradas», porque estas, as lágrimas, irão deixar «regada esta terra seca e são de grande ajuda para ela dar fruto; e tanto mais, quanto menos caso delas fizermos, porque é água que cai do céu».
As palavras e a vivência de Teresa de Jesus são um eventual contraponto à ideia lapidar de Vladimir Jankélévitch quando refere ser possível ao ego amar Deus com um amor egoísta, porque os eus se sucedem uns aos outros como uma colónia de células formando um Eu universal. Transportando a ideia para o domínio do humano, o amor nada mais seria, no sentido que lhe atribuíram Hegel e Eduard von Hartmann, do que egoísmo. O sentimento autêntico poder-se-ia, desse modo, definir como compreensão de uma outra individualidade, passando também, e sobretudo, na acepção de Max Scheler, pela abdicação e restituição de liberdade. Essa dir-se-ia a essência do amor espiritual e físico, que difere, segundo o filósofo, daquilo a que o poeta chama fascínio.
Santa Teresa fala, no entanto, do amor como sacramento de eternidade, o da prevalência da pureza sobre o cálculo ou o mero instinto. Remontando à Idade Média, não foi Heloísa quem, na dicotomia carne/espírito, se viu crucificada por um conflito que lhe parecia quase insuperável, conservando, no entanto, o amor sem o Outro? Não ficou Abelardo ferido de morte? O obstáculo tornou-se, nesse caso, absoluto sacrifício, também ele aqui ligado às teias do divino.
Nessa pureza do amor a que se refere Teresa de Ávila, o proveito está em distinguir: «uma coisa branca parece muito mais branca ao pé de uma negra e ao contrário, a negra ao pé da branca», residindo a sabedoria na saída de um «lodo de misérias». Saída, segundo a autora de «Livro da Vida», só possível pela aspiração às coisas celestes e pedindo paciência nas adversidades: «Nada te inquiete,/ nada te assuste,/ pois tudo passa;/ Deus nunca muda;/ a paciência/ alcança tudo./ Quem Deus possui/ nada lhe falta:/ só Deus nos basta» (A tradução de José Bento deste poema é bem mais feliz do que a inserida nas Edições Carmelo, Aveiro, das «Obras Completas» ).
Também o «Cântico Espiritual», de São João da Cruz (1542-1591), descreve os diversos estados ou vias de exercício espiritual pelos quais passa a alma, sob um amor ardente que busca uma fecunda união com Deus ao lado dos homens. A invocação do amado deixa o amante soluçando, canta as suas grandezas, o amor ferido, deseja morrer até alcançar o matrimónio místico: «Que bem sei a fonte que mana e corre,/ mesmo se é noite!/ Aquela eterna fonte está escondida./ Que bem sei onde sempre ela é nascida,/ mesmo se é noite!/ Sua origem não a sei, pois não a tem,/ mas sei que toda a origem dela vem,/ mesmo se é noite» ( «Cantar da Alma que Rejubila por Conhecer a Deus por Fé» ). O amor a Deus é então entendido como valor moral, como participação efectiva no seu amor pelo mundo. «Amare in Deo» (Santo Agostinho).
Não será inusitado dizer-se que o mecanismo do amor projecta a imagem do que nos falta sobre um outro ser -- e aqui a teoria sensualista de Schopenhauer é mais do que restritiva --, e se o retorno não se produz do mesmo modo, o sentimento torna-se numa condenação à dor: «Nem contigo, nem sem ti» -- diz Ovídio, traduzindo a inversão de um excesso, a repetição melancólica: «Amado, amar-te-ei tanto,/ amar-te-ei, tanto, tanto!/ Os cuidados adoeceram meus olhos./ Causam-me tanta dor!» ( «Carjas», «José o Escriba», Idade Média). E não escreve Ernst Jünger, no seu diário, que uma forma de morrer pior que a morte é ver o ser amado matar lentamente em si próprio a imagem daquele que amava, o que transporta o relacionamento para o território da injustiça na comunicação?
Aí «a língua do amor a quem não sabe/ o que é o amor, que bárbara parece!,/ pois, como por instantes emudece,/ possui pausas de música suave», Lope de Vega (1562-1635) -- com obra nos domínios da poesia, da prosa lírica e da dramaturgia -- é, neste seu poema, cirúrgico na abordagem do valor táctico da corte, dando razão a Madame de Merteuil quando, em «Liaisons Dangereuses», aconselha; «Bem vedes que, quando escreveis a alguém, é para ele e não para vós: deveis, pois, preocupar-vos menos em dizer o que pensais do que em dizer o que mais lhe agrada». O amor vale aqui não como amor, mas empreendimento estratégico, o que transforma em doce a pena que vem do inimigo, comparada com a causada pelo amado.
Muito mais numerosas na história da poesia amorosa são as páginas de lamento do que as de júbilo, embora o mito do amor triunfante possua textos decisivos, do «Cântico dos Cânticos» a Petrarca, de Tourguéniev a Verlaine. E nessa imobilidade móvel da escrita, abordam-se a dinâmica e o paradoxo amorosos, a perenidade dos instantes, o movimento do encontro, os diálogos de solidão, a ruína dos espaços de exaltação, a ascensão e a queda do amor: «Amor me ocupa o cérebro e os sentidos;/ absorto estou em êxtase amoroso;/ não me concede tréguas nem repouso/ esta guerra civil para os nascidos», Francisco de Quevedo (1580-1645) -- notável na mestria poética e tão interventivo e satírico como lírico -- escreve sobre as limitações do espírito que o sujeito apaixonado sofre na «mutabilidade perpétua» do amor.
Não são os apaixonados, por vezes, suicidas do amor, seres em pânico, vítimas do seu imaginário, ansiosos, porém, em daí retirarem o saber? «Todo sou ruínas, todo sou destroços,/ escândalo funesto pròs amantes,/ que de lamentos fabricam seus gozos./ Os que virão e os que existiram antes/ em meu soluço estudem ser ditosos/ e invejem minha dor, se são constantes», escreve Quevedo em «Prossegue no Mesmo Estado de Seus Afectos».
Serve o amor o conhecimento, transporta consigo a distância, necessitando da morte para se cumprir -- salienta Maria Zambrano (também traduzida por José Bento). E Werther pára o tempo com a sua morte, para si próprio e para Carlota, imobilizando, dessa forma, o extraordinário e tornando, assim, eterno o presente de um «prazer em que há dores/ dor em que existe alegria» ( «Quintilhas sobre que Coisa é Amor», de Jorge Manrique, 1440-1479). O amante ama, nesse sentido, em qualquer circunstância, e na inquietude, o completo destino do amado.
Talvez por isso, e porque a impossibilidade convive com a irrealidade, a noção do absolutamente único tenha transportado, desde tempos imemoráveis, para a história da literatura as maiores tragédias amorosas: paraísos e infernos no extremo da realidade, dentro dos quais a memória do sujeito se dissolve no poema numa relação quase última com a sua substância essencial. Frui-se, então, o mundo, ainda que em pura perda na vertigem de uma ficção. Porque, «tudo sendo lua», «sonho que se esfuma», «debaixo do céu homem nenhum alcança/ uma certeza, ninguém há tão perfeito/ que me esclareça o assunto secreto/ dos que morreram, se há neles lembrança» (Ferrán Sánchez Calavera, primeira metade do séc. XV, Cancioneiro de Baena). E muitos são os que morreram de amor...
Ana Marques Gastão, DNA, 2 / Março / 2002
(recolhido n'O CANTO DA FILOSOFIA»