29/02/04

O Debate

Um dos mitos modernos - bebido, aliás, em mitologias ancestrais - tem a ver com uma suposta superioridade do saber feminino em matérias afectivas. Como outros, também este é um mito facilmente contestável e que tem como caricatura, como toda a gente sabe, aquele muito difundido e malfadado mecanismo obsessivo-compulsivo feminino que é o de "discutir a relação".

As mulheres torturam-se a "discutir a relação" e a ponderar as "falhas de comunicação", o que se torna penoso para todos os relacionados - incluindo as duas ou três amigas (mas também pode ser um exército) que inter-agem no debate. Vai toda a minha compreensão para o silêncio masculino, para o submergir no sofá e na televisão, para o método afónico utilizado, para o silenciar do que não há a dizer. Se não há, como dizê-lo? Um dia as mulheres perceberão as iniludíveis vantagens do silêncio, mas hoje não é a véspera desse dia.

Almocei com a Vanessa.

- Continuas apaixonada?

- Ah, sim.

Um tom demasiadamente distante, um travo acre na voz. Se eu tivesse juízo não fazia mais perguntas. Mas ela precisa de conversar, de debater a relação, de exercitar os seus conhecimentos afectivos - é sempre assim, entre a previsão de uma grande seca e o mais bárbaro dos "voyeurismos" que nós, os co-relacionados com o debate de uma relação, nos colocamos.

- Há coisas nele que eu não percebo.

Dois meses passados, à paixão sem regras sucedera a regular ordem das coisas - ou seja, o debate. Eu estava convocada, como sempre, e participaria, como sempre, despejando uma carga de lugares-comuns, como sempre, sugerindo estratégias, como sempre, aproveitando os mais frágeis indícios para a consolar, como sempre.

- Há coisas nele que eu não percebo.

- Mas o quê, concretamente?

- Sei lá. Não percebo se ele continua mesmo apaixonado por mim.

- Ele diz que sim?

- Diz que sim, diz.

- Mas qual é o teu problema?

- Eu não consigo achar que aquele "sim" é mesmo "sim". Tenho dúvidas: é uma questão de tom. Não gosto, por vezes, do tom da voz dele ao telefone.

- Há muita gente que detesta falar ao telefone, que se transfigura ao telefone. É aquilo do meio ser a mensagem, o meio transforma a mensagem: um 'amo-te' ao telefone pode perder consistência. Eu não me preocupava muito com isso.

- Achas? Mas há mais coisas nele que eu não percebo.

- Vanessa, há coisas nele que percebes?

- Meia-dúzia.

- Meia-dúzia? Meia-dúzia são muitas coisas. Por amor de Deus, meia-dúzia é imenso. Reconheces que percebes meia-dúzia de coisas e queres abrir um debate?

- É que, em mim, também há coisas que eu não percebo. Não consigo perceber se ainda estou apaixonada por ele. No fundo, era isso que eu gostava de debater.

ANA SÁ LOPES
Domingo, 29 de Fevereiro de 2004, in Público

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