02/02/07

Desde que me lembro de dar comigo a pensar na morte - e para tal tenho de recuar aos tempos das 'depressões(zinhas)' juvenis, já lá vão uns bons tempinhos! - sempre se instalou, na minha ideia, que queria ser cremada. Depois, com o desenrolar da vida, fui firmando esta ideia agora já duma forma racionalizada, racionalização essa que passava por achar as cerimónias fúnebres um completo disparate, tantas vezes transformadas em festivais de hipocrisia familiar. Dos velórios, então, nem se fala. Ou melhor: falar, fala-se, mas de tudo menos de quem morreu. Ou, então, fala-se exactamento ao contrário do que se fazia em vida: todos os defeitos assinalados em vida passam a virtudes glorificadas na morte. Fui a um funeral em toda a minha vida (tendo passado por cima do velório e, pelo que me contaram depois, fiz muito bem ou teria desatado à estalada a toda a gente antes de correr com todos para o olho da rua!) e jurei a mim mesma que seria o último!

No entanto, discutimos tantas vezes sobre a necessidade do luto...lembras-te? Nunca percebi essa ideia. Talvez porque nunca tinha deparado com a chegada da morte...sem aviso. A minha relação com a morte sempre se fez numa base de auto-defesa: se a pessoa estava muito doente, terminalmente doente, eu entendia ser dum profundo egoísmo chorar-lhe a morte. Não se chora porque a pessoa morreu, chora-se porque a pessoa nos morreu. E, assim sendo, a morte é uma libertação para quem deixa de sofrer e o nosso sofrimento é a quota parte a pagar por se amar quem partiu. Guarde-se a memória, mas...liberte-se a dor!


Agora, agora começo a entender a necessidade de fazer o luto, de ter 'algo' a que me agarrar para chorar a dor da partida...sem aviso!, sem necessidade de libertação!, sem doença, ou mal, que o justificasse! Morreste-me apenas porque estavas vivo e alguém entendeu (ou nem sequer o entendeu tendo sido, apenas, um gesto gratúito da absoluta estúpidez humana) que assim não devias continuar. Eu não soube aprender esta tua lição: "E os MEUS mortos são MEUS porque eu lhes consegui dizer : ADEUS !"


Cumpriu-se o que sempre se disse ser para cumprir e agora? Como é que me despeço? Que luto faço? Estupidamente, e mais uma vez, fugi da realidade; imaginei (ou queria tanto acreditar!?) que não vendo, não existia e assim eu não sofria. Engano puro! Não são as almas dos mortos que pairam - penando por aí, algures - quando não alcançam a paz...são as dos vivos que não sabem despedir-se dos seus mortos.









***...***...***
(Magritte)/"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW

6 comentários:

cristina disse...

E essa nova visão do luto fez-te repensar as cerimónias fúnebres?...

Ainda sem a vida muito desenrolada, também partilho da preferência pela cremação. Mas mais do que pela hipocrisia da cerimónia, pela campa e pelo cemitério propriamente dito. A cremação também pode ter cerimónia - o dizer adeus. Mas o que eu não percebo é a necessidade de uma campa! Dizem-me que é um local de referência... Então que se escolha um jardim, uma árvore, um rio,... alguma sítio onde se deitem as cinzas e que fique como referência - se dela houver necessidade!

amok_she disse...

Campa...jardim...árvore...são apenas referências que nos ajudam a manter a ligação...e acima de tudo, reconheço agora, ajudam a apreender a realidade...da separação pra sempre!...

Não tendo esse suporte o que sucede? Continuo à espera...q a realidade não seja essa...a da dor do fim!

A cremação pode servir de referência, penso eu, se formos capazes (e nos for possível) conservar as cinzas, mas ...referias tb. um rio e eu acrescento o mar...e neste caso como é q mantemos o vínculo?, eu olho para o mar/rio e isso diz-me o quê, sabendo q 'a mesma água não corre, nc, sob a mesma ponte?', imaginas o vazio q se junta ao vazio já existente?

O q mudou, em mim, foi a percepção de q a existência duma campa, dum jazigo, duma árvore, dum jardim...permitem-nos preservar um espaço-tempo só nosso e do(s) nosso(s) morto(s)...longe dos olhares alheios q é o q me incomda mais nos funerais: o espectaculo da dor!

Não q eu ñ possa ter esse tempo-espaço em qq lado porque,afinal,o q nos resta e fica para sempre são, mesmo, as memórias, mas... assim sendo fica a 'estúpida' e eterna esperança de q td não passe dum engano e q a saudade é a mesma de qd se está durante uns tempos afastado...qd na realidade não há retorno possível!

cristina disse...

Não acho nada que um cemitério seja um local «só nosso e dos nossos mortos» e muito menos que esteja «longe de olhares alheios» - pelo menos os (poucos) cemitérios que conheço cá: atafulhados de campas e de pessoas...

Guardar as cinzas parece-me um bocado mórbido...

O mar... olha aí está um "local" que - de momento! - me parece apropriado para "guardar" uma memória. Não vejo o constante correr da água como um vazio, muito pelo contrário! E a vastidão - não o vazio!!! - do mar, essa sim, pode dar-nos em qualquer momento um «espaço-tempo» só nosso, com a amplitude ou o resguardo que quisermos, capaz de se adaptar à mutação natural de estados de espírito.

Mas o que me parece mais natural é associar o vínculo a algo que já existe. Quero dizer que, quando nos morre alguém, e nos lembramos dessa pessoa, não é o cemitério que nos vem à memória, são os locais marcantes que em vida partilhamos. Associar as cizas depois da morte a esse local é como que um eternizar/prepetuar de uma memória, que me parece muito mais adequado que um cemitério!

Basicamente, acho que qualquer outro local escolhido me parece mais adequado que um cemitério atafulhado de campas...

amok_she disse...

Sempre tive essa ideia (romântica?) das cinzas atiradas ao mar...continuo a querer isso para mim, mas...agora sinto-me 'expoliada' por tal ter sucedido...acho q, essencialmente, a questão passa por ainda ser recente...por eu me recusar a aceitar a realidade...por me ter recusado a ir ao funeral...por as coisas se terem passado duma forma tão absurda q me parece impossível q tenha mesmo sucedido...pq «(...)O saber que a morte é o auge da vida , torna-nos tão humanos que tememos a morte pelo que não fizemos … pelo que fica de nós por partilhar… pelo que omitimos… É esse o medo que deveríamos ter: o medo de não termos sido capazes!(...)»

...enfim, continuo a não saber despedir-me dos meus mortos... continuo a não saber fazer o luto...a questão da campa, do cemitério, de qq coisa!, é tão só o desespero pelo que ficou por dizer, por fazer...por viver!

cristina disse...

Ainda não tenho muitos mortos «meus», por isso confesso que falo um bocado do que não sei... A tua opinião despertou-me particular interesse pois, pelos vistos, pensavas como eu, até ao momento em que as ideias foram confrontadas com os factos...

«O saber que a morte é o auge da vida» é um pensamento que não partilho e espero não vir a partilhar... Quanto ao resto, concordo: «tememos a morte pelo que não fizemos», «pelo que ficou por dizer, por fazer... por viver!»

amok_she disse...

«(...)A tua opinião despertou-me particular interesse pois, pelos vistos, pensavas como eu, até ao momento em que as ideias foram confrontadas com os factos...(...)»

Exacto! Mais do q mudar, de certo modo, de opinião o sentir as coisas numa outra perspectiva é que me fez começar a pensar...a pensar...Não é q tenha mudado, propriamente, de opinião, mas...começo a entender melhor as razões emocionais q levaram às origens do ritual do velório/funeral...mas é claro q ñ enquadro (nem me enquadro [n])as fantochadas sociais desse ritual...