22/12/03

Coração de cetim

«Voltei a pensar em ti. Um dia mais, um mês mais, um ano mais.

(..)
Sentada num banco do jardim olho a árvore. A mesma que, da janela do meu quarto, atravessa as cores e o vento e o cheiro das estações. Sei que os troncos nus e vazios da noite acordam vestidos de folhas, as folhas enfeitam o jardim de verde-novo, amarelecem e vão-se embora. Não tem importância nenhuma porque é sempre assim, sem novidade. Prefiro a ausência sem novidade à saudade; essa ausência rasgada pela memória. A ausência é uma saudade arrefecida, uma saudade que nos faz ter tempo para recuar e olhar para dentro. A saudade não, não sobra tempo para nada, porque todo o tempo do mundo pertence-lhe. Por isso gosto da ausência, tem a virtude de seleccionar o melhor, dar lustro às imagens que julgávamos desimportantes, e passar um mata-borrão nas más. Na ausência, resolvemo-nos por dentro e acertamos contas com a memória das coisas boas. Como a luz do teu olhar, sempre que alongávamos a vista pelas ondas altas de espuma a rebentarem do outro lado da estrada e te ouvia falar do juízo da vida. Ou quando nos sentávamos nos degraus de pedra a escutar o silêncio dos cedros que varriam as nuvens devagarinho para perto do mar. Ou simplesmente nada. No nada que nos separa agora cabe lá tudo o que quisermos. É melhor assim. É melhor que não voltes. Quando voltas, baralho a ausência com a saudade e confundo tudo. Não posso fazer travar a história dividida das nossas vidas, nem ampliá-la à minha maneira para que a lembres melhor. De que serve colar «cromos» de um metro e 80, cultos e tudo, na caderneta? Ceder à tentação de um «new-look» ultra-arrojado? As massagens de requinte asiático que nos devolvem o corpo dos 20 anos? Viver de sopa e ananás 15 dias seguidos? Chorar ao colo do psiquiatra ou fugir para as Maldivas?

Dizem que o tempo cura. É mentira. O tempo não cura nada, o tempo alivia a dor, consola-nos a alma, ensina-nos a tratar os afectos como pessoas crescidas. Uma espécie de anestesia fraquinha, que nos faz distrair de nós mesmos. Das nossas emoções e da força dos nossos sentidos. E depois vêm os entendidos, movidos pela urgência da cura. Trazem o diagnóstico numa mão e a receita na outra; chamam-lhe obsessão, fixação, paranóia, teimosia, e para que ela se instale há que declinar o verbo esquecer, em todos os tempos e modos, como se alguém assim estivesse realmente interessado em esquecer. Mas na verdade tornámo-nos «autistas do amor» e a convalescença é apenas o analgésico da recaída - quando nos julgamos sarados da ausência, ela ganha contornos antigos e de repente agiganta-se à nossa frente maior do que nunca antes. É este o sentido trágico da vida: a dose a mais de amor, aquela que mata porque ele não morre. Contas feitas, o que prevalece são paródias tristes de Carnaval… A pressão da água a explodir dentro dos balões, serpentinas partidas que não chegam a atravessar o dia, máscaras para esconder o cansaço, desfiles de ilusão pela ruas da cidade e os tais corações de cetim brilhante, como a minha avó dizia: «Brilham tanto que são falsos, filha, os verdadeiros vêem-se à distância».

Entre a verdade que dói um bocadinho e a imitação que distrai um bocadinho, «faz-se da vida uma aventura errante».

Na ausência tudo isto fica mais claro. Vou ver se não volto a pensar em ti.»

Maria João Lopo de Carvalho

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