27/12/03

«Fazes-me Falta» (2)

“A amizade, história de perdões incessantes. Com o passar do tempo perdemos a paciência para a história, já não nos importa perdoar e ser perdoados. Essa aeróbica interior cansa, miúda. Eras tão obsessiva em tudo. Queria roubar-te a obsessão, ter outra vez os teus vinte anos. Mas eu era já demasiado velho, voltava a ser novo, como as crianças, trocando um brinquedo pelo outro, respondendo ao brilho da próxima mão, existindo à superfície das coisas, táctil. A sabedoria do gozo, avessa à ciência do prazer. A felicidade esgotava-te, o sofrimento exaltava-te, nada era fácil para ti.
-Como podes ter vivido tanto e ser tão leve?, perguntavas-me. Eu respondia apenas com sorrisos. Ai de ti, se descobrisses que viver demasiado é desistir da vida. Como as crianças. Morrem num instante. Magoam-se menos. Não sabem que a morte existe. É por isso que não perdoo a tua morte. Crava-se-me nos ossos. Sou a tua morte, para que tu vivas ainda. Precisava de um filho que me tornasse mortal em vez de morto. De um ser sem passado nem futuro, hoje, aqui, nos meus braços afogados na tua sombra. O que viverá de ti quando eu morrer?

Inês Pedrosa

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