13/02/05

'Rostos e Almas'

«Que é um rosto? É algo em que se concentra o que há de mais íntimo e subtil de um corpo - mas, sobretudo, de um ser. No rosto, desenham-se sons inexprimíveis, vozes murmuradas, coros que são florestas. Existem elementos passivos, como o nariz e as orelhas, e factores activos, como a boca e os olhos. É no plano dos factores activos que encontramos uma escrita quase invisível, uma proliferação de sinais: um simples arquear da sobrancelha e há uma altivez que se ergue; uns olhos que se semicerram e há uma tentativa de compreensão; um olhar que se abre, atónito, e sente-se que o espanto rasga o rosto.

E a boca? Não há nela o mesmo encostar-se à espiritualidade, porque é feita de lábios e de uma língua que se esconde. Quando a língua se mostra, entramos no domínio da provocação, do insulto, da delinquência facial. Mas os lábios exprimem a ternura ou avaliam a capacidade de devoração. E por eles passa esse elemento inqualificável, esse sopro de vida, que é a voz. E por ele se respira até ao limiar da morte, que é o último suspiro.

Contudo, um rosto é acima de tudo um olhar de infinito onde penetramos com uma suavidade nupcial. Um infinito que passa por uma ruga, uma crispação, uma cintilação. Por uma física do infinito. Como é, maior do que todas, no seu rolar de absolutos divinos, a música de Bach.

O que Ingmar Bergman filma em "Saraband" (sem dúvida, um dos grandes filmes do nosso tempo) é, por um lado, a música que desloca os corpos e os cruza e descruza segundo cifras incompreensíveis. É, por outro lado, em primeiros planos de uma justeza vertiginosa, o enigma de um rosto, a sua dor, a sua alegria, o peso, a sua leveza. Há apenas um rosto que permanece inalterado, paralisado na sua forma de loucura e alheamento: o da filha de Liv Ullmann. Mas na última sequência, numa cena que toca o reconhecimento dos afectos que ligam os seres de uma forma sublime, ela abre os olhos para a mãe e qualquer coisa acontece.

O que Bergman filma de um modo extraordinário é a sucessão de acontecimentos que alteram o estado das coisas. Não se segue um fio psicológico, embora a psicologia esteja lá toda (sobretudo, na personagem interpretada por Liv Ullmann), que é quem dá o passo atrás, ordena as fotografias e funciona como espectadora privilegiada que participa sem se deixar envolver em excesso.

Mas é ela que desencadeia a narração ao decidir, quase trinta anos depois, ir visitar o seu velho e misantropo ex-marido, que vive numa casa da montanha rodeado de livros e pensamentos filosóficos. O que verificamos é que existe uma espécie de ambivalência entre o amor e o ódio e que ocorrem na mesma sequência: evoquemos o diálogo entre Liv Ullmann e o filho que o ex-marido odeia, e o modo como ele, sabendo que ela é advogada, pretende interditar o pai; ou depois da perturbação que o ex-marido tem com a notícia da tentativa de suicídio do filho, a forma como diz que ele "falhou tudo na vida". Mas é na dilaceração que estas viragens produzem, abrindo um vazio sem fundo, um abismo último, que vai acontecer essa sequência extraordinária em que o ex-marido se despe e pede à ex-mulher que também se dispa, para ficarem os dois lado a lado na cama, pobres, trémulos e despojados.»

Por EDUARDO PRADO COELHO
Sexta-feira, 11 de Fevereiro de 2005, in Público

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(Magritte)/"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW

1 comentário:

amok_she disse...

Para este [SARABAND] ainda estou sem palavras!...ainda estou a "digerir"...talvez daqui a algum tempo - anos?! - consiga exprimir alguma coisa...cá para fora...de momento fica a "doer" cá dentro...