"Hoje existo e basta-me. Hoje insisto e basto-me."
"PALIATIVO
A minha dimensão é a solidão. Os poderosos são sempre estupidamente perigosos e os fracos inofensivamente estúpidos. Uns não podem com a minha resistência, os outros com o meu carácter. Mas, na verdade, o que lhes causa eczemas mentais no espírito epidérmico e apertadinho são as raízes da minha liberdade. Arre! que nunca compreenderam que a vida só poderia ser uma grande sinfonia; e tudo isso sem grande esforço. É complicado? Pois seja. Então não me digam nada. Estou farto de competitivos e de cooperativos. Quero uma pátria de solitários. E quanto a morrer, só quando eu quiser - ou seja, antes do destino mas depois da medicina, e nem a mãe Natureza me pode vencer nisso. Depois disso, tornar-me-ei compreensível para todos vós. Há por aí um projecto para um novo Mundo? Convidem-me! Não me chateiem com ninharias. Deus é meu amigo. Eu não sei ter amigos. Já Lhe pedi, contudo, uma borracha para apagar realidades. Foi-me recusada sob o pretexto de ser uma arma letal nas mãos dum esteta. E eu que só queria apagar umas coisitas. Existem as bombas, é certo, mas o estrondo incomoda-me mais do que o fulgurante efeito me poderia satisfazer. Às vezes também odeio, mas curo-me depressa. E isto da bomba seria mais pelo tédio. Sou um pachorrento sentimentalão. Até a estupidez por vezes me enternece. A maldade aborrece-me, só pelo facto de ser quase sempre tão primária. Acabo por gostar de alguns filhos-da-puta. É aquela treta do ser humano. É claro que a matéria, essa meretriz evidente, me perturba. Doutro modo como teria tesão? Mas há que convir que é repelente. Tanto a erecção como a trampa da biologia que a inspira. Há o amor, pois claro! Mas já está tão usado, até pelos medíocres e outros pimbas, que já não sei o que lhe fazer. Adoro os meus filhos, acima de tudo, pelo facto de só poderem vir a ser melhores que eu: mais rectos e imparciais, rápidos e racionais, intensos e rigorosos, polidos e matemáticos, filósofos de software, românticos materialistas, niilistas de hipermercado, sensíveis de alta tecnologia, egocêntricos de cortar à faca, narcisos de outdoor, apaixonados virtuais; enfim, uns andróides quase perfeitos num infindável mundo de quadrúpedes. Continuará, apesar de tudo, a haver o problema de serem muitos. Não me canso de perguntar: para quê tantos? Está muito certo que cada homem seja um símbolo, não consigo é conceber a utilidade de tiragens maciças em metrópoles fotocopiadoras, a partir de um original de má qualidade. Deve haver algures a possibilidade de ser-se mais que "homem-apenas". Ou então não haja. Raio de mania de querer sublimar a nossa fedorenta condição com recheios perfumados de espiritualidade. Hoje existo e basta-me. Hoje insisto e basto-me. Amanhã estarei simplesmente mais cansado de existir e insistir. Pensar é apenas um género erudito de dor de cabeça ... E sentir o Universo, afinal, é apenas um imenso paliativo."
» embasbacado, 2004-05-07 (16:12), in PASTILHAS