23/05/04

"Tomem lá "Fahrenheit 9/11" e despachem George Bush"




"Fahrenheit 9/11", com que Moore regressa à competição de Cannes, depois de "Bowling for Columbine", é uma "assemblage" de materiais para melhor fazer uma campanha. Não é um documentário de investigação (embora utilize documentos que outros investigaram), é um instrumento político.

Moore aparece menos do que em "Bowling...", a recriação é menos rica e transgressora, porque não há tempo a perder. É juntar o mais possível contra George Bush: das ligações económicas dos Bush à família real saudita (Moore entrevista Craig Unger, autor do livro "House of Bush, House of Saud"), das ligações dos Bush com a família de Osama Bin Laden. Mais factos, segundo Moore, para queimar o Presidente: de como Bush fez sair dos EUA, nos dias a seguir ao ataque às Torres Gémeas, 24 membros da família Bin Laden. De como Bush, no momento em que a segunda torre foi atingida, visitava uma escola da Florida e lia às crianças "My Pet Goat" (há imagens, quando um assistente lhe segredou ao ouvido a notícia, parece hoje um momento de "candid camera") e continuou a ler mas começou a pensar: como apagar as ligações aos Bin Laden e à Arábia Saudita? Como prosseguir as verdadeiras intenções?

Resposta, segundo Moore: inventando uma intervenção libertadora no Afeganistão, esquecer Bin Laden, e passar ao que verdadeiramente interessava: o Iraque, a instalação de uma máquina para os ganhos de uma economia de guerra.

"A administração Bush só podia ir para a guerra se convencesse a população americana que Saddam Hussein tinha uma relação com a Al-Quaeda. E foram bons a fazer isso", é a tese de Moore.

É a partir daqui que "Fahrenheit 9/11" quer ser a descrição em pinceladas largas dos tempos de um regime que instalou a "paranóia e a cultura do medo" para que os americanos aceitassem a intervenção no Iraque. Americanos (as populações economicamente mais esventradas, e etnicamente segregadas, de quem Moore quer ser paladino) que começam a dar-se conta da "mentira".

É aqui que "Fahrenheit 9/11" pode ter efeitos mais devastadores porque mostra imagens que os americanos não viram: segmentos de um país em flagrante decepção, com declarações de soldados no Iraque, testemunhos das famílias dos que morreram em combate e dos que regressaram a casa estropiados.

As imagens do Iraque foram captadas por "free-lancers", contratados por Moore ou a quem a ele comprou o material. A sua existência em "Fahrenheit 9/11" e o facto de nunca antes terem sido mostradas por cadeias televisivas americanas (soldados dizem: "Por que é que o George nos mandou para aqui?"; soldados americanos são vistos a humilhar iraquianos nas ruas) é, para Moore, a prova de que os media participaram na "mentira".

"É uma vergonha que só hoje estas imagens tenham sido vistas por espectadores. As torturas infligidas a prisioneiros iraquianos por soldados americanos passaram-se dentro de prisões, percebe-se porque é que demoraram a ser divulgadas. Mas o que mostramos no meu filme decorria a céu aberto, qualquer jornalista podia ter denunciado. O que é que penso desses actos de tortura? Se se perdeu a moralidade mandando homens para uma guerra com base numa mentira, como não esperar que a imoralidade leve à imoralidade?".

Que percurso pode fazer nesta competição um objecto tão desbragadamente político? Entraves éticos ou exigências de imparcialidade podem ser contrapostos — se se falar de "documentário" —, mas não fica esmorecida a singularidade de algo que não é muito diferente de um tempo de antena de campanha, o "timing" da apresentação e a veemência de quem o propõe.

É esperar para ver o que o júri presidido pelo apolítico Quentin Tarantino decidirá. A batalha de "Fahrenheit 9/11" é que não se esgota no que foi mostrado. Moore anunciou que a Miramax lhe deu dinheiro para encarar o filme como um "work in progress", para o actualizar sempre que necessário.

A Casa Branca quis impedir o filme

Segundo Moore, a Casa Branca tentou impedir que "Fahrenheit 9/11" fosse realizado. Provas? "O contrato com a Icon Productions [produtora de Mel Gibson] estava assinado, estávamos a rodar o filme, quando Ari Emmanuel, o meu agente, recebeu um telefone da Icon a pedir que os desvinculássemos do contrato. Porque é que a Icon, que tanto dinheiro fez com a distribuição na Austrália e na Nova Zelândia de 'Bowling for Columbine' e que tão interessada estava neste filme, subitamente pediu para desistir? Perguntem-lhes. O que nos disseram foi que alguém do Partido Republicano os avisara: 'Se produzem o filme, o Mel [Gibson, conhecido republicano] bem pode ficar à espera de convites da Casa Branca". Quem telefonou a Mel? "Perguntem ao Mel".

A Miramax veio preencher a lacuna, mas a Disney, a "casa mãe" que integra a empresa dos irmãos Weinstein, decidiu há semanas que em ano de eleições "Fahrenheit 9/11" não era apropriado para distribuição. "Perceberam que o impacto do filme num resultado eleitoral é maior do que pensavam". A Disney alegou uma clásula do contrato com a Miramax para impedir a empresa de Harvey Weinstein de distribuir o filme, a Miramax viu-se obrigada a comprá-lo à Disney. Agora procura-se distribuidor.

"Garanto-vos que o filme vai ser visto nos EUA, vai chegar ao maior número de americanos possível, e na data que prevemos, no Verão, antes das eleições e não depois delas". O que Moore quer dizer é que lançar o filme depois das eleições é contradizer a razão da sua existência: influenciar as eleições. Tem sido referido como data de estreia o 4 de Julho, feriado nacional.

"Os meus filmes estreiam nos EUA em centros comerciais, não em salas de ensaio. É para o público em geral que faço filmes. Há dados que mostram que 70 por cento das pessoas que viram 'Bowling for Columbine' nunca na vida tinham visto um documentário. Quando faço um filme penso num filme para ser visto sexta-feira à noite, num centro comercial, com pipocas. Este é um filme sobre os tempos em que vivemos, sobre o que nos aconteceu a nós, americanos, depois do 11 de Setembro. Mas é um filme que deve divertir as pessoas que o vêem. É importante rirmo-nos em tempos como estes. Só que desta vez foi Bush que escreveu os diálogos que mais dão vontade de rir..."

Vasco Câmara, em Cannes
18 de Maio de 2004, in Público

2 comentários:

Velasquez disse...

Sabem uma coisa?

Perguntei ao céu onde estava o medo
Se na beleza ou nessa habilidade
De usar a palavra como um segredo
Como fazem homens e Xerazade.
Pediu-me depois que apontasse o dedo
E então soltasse a áurea autoridade,
P'ra que a beleza pudesse nascer,
Com as palavras belas a crescer.

albertovelasquez.blogspot.com

amok_she disse...

...belo verso...obrigada pela partilha...