11/05/04

"Irra! Vá lá um gajo competir com estes palermas!"

IRRA!

Se querem que vos diga, recordo-me perfeitamente. Eram seis da tarde e eu tinha dez anos. Estava sentado ao lado do meu pai, muito entretido a observar a fauna que se encontrava no Café Nicola. O meu pai lia "O Século" e eu resistia às caretas das velhas pintadas. Sem aviso e muito de repente, saído do carrossel da porta giratória, estacou um ser esbugalhadíssimo que se pôs a observar o recheio humano de toda a sala. Instalou-se um silêncio incómodo, enquanto todas as cabeças apontavam para o homem. Depois de resistir ao tiroteio de olhares, o homem vociferou: "Irra! Vá lá um gajo pintar as trombas destes palermas". Voltou costas e saiu, deixando a porta a girar num rodopio. O silêncio foi quebrado por duas ou três gargalhadas, um pouco nervosas lembro-me bem. Meu pai, antes de reabrir o jornal, disse-me em tom sério e pedagógico, justificando plenamente o mérito de tal acção: " É pintor!". Nunca mais vi o ser e jamais cheguei a perguntar ao meu pai o seu nome. Na qualidade de anónimo tem-me servido, perfeitamente, para os devidos efeitos. Fiquei, desde esse dia, a saber que os seres de casta esbugalhadíssima têm o poder de silenciar uma sala e decidir acerca do que fazer com as trombas dos palermas, sem necessitarem de requerer alvará ou diploma competente para tal, pois são uma suprema autoridade na matéria disciplinar da essência do humano. A expressão da loucura acompanhada do requinte do brilhantismo, causam-me arrepios na espinha e dão-me os únicos vislumbres de algo divino nos seres humanos.
Cultura sem loucura é uma treta hermética, boa para conversas de chá de cadáveres eruditos. Loucura sem cultura é simplesmente uma tristeza, boa, eventualmente, para regar a estupidez natural da juventude. Do casamento das duas é que nasce o que é bom. Pois então! Mas há que ser comedido; nem muita cultura, nem muita loucura. O que é demais não presta e como a sociedade está longe de ser perfeita, pode-se acabar preso ou com camisa de forças. Há então que praticar a coisa com calma. Tirar proveito da total ignorância dos outros acerca de nós. Ser tolinho às nove e meia e dizer coisas p'rá posteridade às nove e trinta e dois. Baralhar em grande estilo.
Há ainda o total direito de dizer caralhadas publicamente ou inscrevê-las em prosa, por parte de quem saiba inserir, num ramalhete de verborreia arcaica, uma estopada do tipo: idiossincrasia! Já deveriam, no entanto, de ficar interditados da utilização oral das mesmas, os seres lerdos ou boçais que dispõem apenas de uma dezena ou duas de palavras no seu vocabulário. A título de avaliação da diferença exposta, cito dois exemplos: "Amélia, apesar dos repetidos avisos proferidos pela minha pessoa, quanto ao facto de você não dever facultar peças do serviço de loiça chinês para as singelas e pequeníssimas mãos da nossa Filipinha, a sacana da criança, contudo, acabou de escaqueirar uma puta duma chávena... Faça o obséquio de ter mais atenção de futuro, foda-se!"- Lindo! E: "Carago Maria, tira o púcaro de merda das patas da cabra da Vanessa antes que vá para o caralho!" - Horroroso!
Mas, quando se tratam de escritas, as ditas bojardas já nem chocam. Pena é, que hajam escribas manhosos e comediantes repelentes a aproveitarem-se do estrondo inato desses crus ornamentos linguísticos, retirando-lhes a incandescência genuína e utilizando-os como eventuais lantejoulas inovadoras para pseudo obras literárias, ou como condimentos brutos para um humor reles e primário.
- Irra! Vá lá um gajo competir com estes palermas!
» embasbacado, 2004-05-11 (16:39), PASTILHAS

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