«O CÉREBRO INFANTIL ESTÁ A MUDAR?»
Formatados
Por O CÉREBRO INFANTIL ESTÁ A MUDAR?
Domingo, 26 de Setembro de 2004, in Público
Clara Viana
Foi à entrada do 3º ano, a antiga terceira classe, que na aula do João várias crianças passaram a ter o seu novo rótulo. Em 22 miúdos, seis, segundo a professora, teriam problemas - ou de défice de atenção com hiperactividade, ou de dislexia, ou estavam a entrar na nebulosa das dificuldades de aprendizagem. Os pais procuram então ajuda médica e quase sempre acabam com uma receita na mão, a de uma anfetamina. Mas um estudo científico veio lançar nova luz sobre o assunto, apontando mesmo para um nova etapa na história da civilização.
As nossas irrequietas e alegadamente muito desatentas crias poderão afinal, ao serem assim, estar em processo de adaptação ao novo mundo em que vivemos onde quase tudo é muito e muito rápido.
A hipótese desta "formatação" - implicando alterações cerebrais, no que respeita aos modos como a informação é processada e recebida - tem vindo a ser relançada nos Estados Unidos da América (EUA), e não só, desde que, em Abril passado, foi dada como testada uma relação entre a exposição precoce à televisão e os problemas de atenção que, nos últimos anos, parecem estar a tomar de assalto as crianças e jovens do mundo desenvolvido.
"Não é possível saber se o crescimento da desordem por défice de atenção e hiperactividade é real, ou se é motivado pelo maior conhecimento da desordem. Mas existem razões para acreditar que, na primeira infância, os factores ambientais são importantes no desenvolvimento da desordem. Deste modo, a televisão pode muito bem ser um desses factores", comentou à Pública o pediatra norte-americano Dimitri Christakis. Foi ele que liderou o estudo do Child Health Institut, da Universidade de Washington, que veio dar uma primeira grande resposta afirmativa à questão, abanando assim a abordagem genética do chamado défice de atenção, ainda a preponderante nos EUA, em Portugal ou em mais meio mundo.
Sendo "a mais comum desordem de comportamento na infância" e "apesar de décadas de investigação", o que para Christakis e a sua equipa continua a ser inquietante é que "surpreendentemente se saiba tão pouco sobre as suas causas". Um desconhecimento que é em grande parte justificado, segundo eles, pela explicação genética para aquele problema. A abordagem genética apoia-se em vários estudos, já com alguns anos, que dão conta da grande hereditariedade da perturbação e de um grau de incidência semelhante - 3 a 5 por cento de crianças em idade escolar, maioritariamente rapazes - em vários países e culturas.
Esta abordagem acabou por instalar "um sentimento de inevitabilidade ou imutabilidade" do problema. O que tem contribuído também, segundo eles, para a sub-avaliação do "papel potencialmente crucial que o vivido na primeira infância poderá ter, tanto no desenvolvimento como na modelação dos problemas da atenção". Foi por isso que decidiram olhar para o que rodeia a criança e, motivados por outras investigações, testar se a simples exposição à televisão, em idades muito precoces, estaria ou não associada ao surgimento de distúrbios da atenção por volta dos sete anos, idade em que o défice começa geralmente a ser encarado como problema.
É por esta altura que muitos pais iniciam, também em Portugal, o que revelará ser uma via sacra. Os neuropediatras Pedro Cabral e Luís Borges, o psiquiatra da infância e adolescência Emílio Salgueiro e a psicóloga clínica, Dulce Gonçalves, que trabalha em dificuldades na aprendizagem, representam, até pela sua formação, abordagens diversas do problema, mas todos eles concordam que a maioria procura auxílio devido a "queixas da escola": mau rendimento escolar do filho, sua impossibilidade de "estar quieto" ou incapacidade de estabelecer boas relações com outros, ou tudo junto. Numa palavra, o filho, na escola, tornou-se um elemento "perturbador". Ou é assim descrito, o que pode não ser a mesma coisa. Um dos problemas dos rótulos em moda é o de poderem esconder outras perturbações - medos, manias, ansiedade ou até mesmo intrínsecas dificuldades cognitivas.
Outro traço comum aos especialistas que ouvimos sobre esta matéria é a incomunicabilidade entre as diferentes abordagens - a mesma incomunicabilidade que já psicanalistas e neurologistas conheceram há cem anos atrás.
"Precisávamos mais que os professores nos descrevessem em pormenor as dificuldades e que não pusessem rótulos. É que o rótulo do défice de atenção é quase uma profecia realizada. Trata-se do chamado efeito de Rosenthal ou de Pigmaleão", aquele que nos diz que as expectativas que os professores criam no início em relação ao aluno acabam por influenciar o desempenho escolar deste, sublinha Dulce Gonçalves.
Nos EUA onde, para "compensar" o défice de atenção, quase cinco milhões de crianças estão a ser medicadas com comprimidos da família das anfetaminas, que curiosamente também são aqueles que os acalmam, Cristakis e a sua equipa pegaram numa amostra de mais de duas mil crianças com um e três anos de idade e seguiram-nas até por volta dos sete. O que foi feito do seguinte modo: quando os miúdos tinham um ano perguntaram aos seus pais quantas horas viam eles televisão; fizeram o mesmo quando chegaram aos três anos e depois, quando já tinham sete, as questões aos pais incidiram sobre a capacidade de atenção dos observados, sobre a capacidade para se concentrarem, sobre se eram impulsivos ou se se distraíam facilmente. Para além destes questionários foram levadas em linha de conta variáveis como a depressão materna, a estimulação cognitiva e o apoio emocional, entre outras.
Principal conclusão do seu estudo, publicado na revista "Pediatrics": independentemente do que vê - os conteúdos não foram tidos em conta - uma criança antes dos três anos que veja duas horas de televisão por dia tem mais 20 por cento de probabilidades de desenvolver problemas de atenção do que outra que não tenha sido tão exposta à mesma televisão.
Sendo que, como também revela a sua investigação, nos EUA uma criança de um ano vê, em média, 2,2 horas de televisão por dia e uma de três chega quase às quatro horas. Em Portugal, esta contagem só tem sido feita a partir dos 4 anos. No ano passado, os que tinham entre esta idade e os 14 anos, despendiam a ver televisão uma média de 179 minutos por dia - quase três horas.
Christakis explica o que se poderá estar a passar: "Nos primeiros três anos de vida está em curso um desenvolvimento crucial do cérebro, especificamente as conexões entre neurónios. Aquilo a que chamamos sinapses do cérebro estão a formar-se. É uma espécie de montagem da mente que está a ocorrer naquele período. Sabemos, por estudos feitos em ratos muito jovens, que se os expusermos a diferentes níveis de estimulação visual nos primeiros tempos de vida, obteremos diferenças na arquitectura dos seus cérebros de acordo com o grau de estimulação visual que sofreram".
Frente à televisão, geralmente a sós, as crianças estarão a ser sujeitas precisamente a uma sobre-estimulação visual, dada sobretudo a velocidade com que se sucedem as imagens e a sua diversidade, que é hoje a própria matéria dos media electrónicos . Esta exposição aos écrãs - que começa na televisão e se prolonga depois nos jogos de computador, "game boy", internet, etc. - poderá ter já "condicionado o cérebro a um alto nível de estimulação", como sublinha o pediatra norte-americano
Um pouco por todo o mundo ocidental, as queixas são as mesmas: os pequenos estudantes têm hoje períodos de atenção mais curtos, são menos capazes de raciocínio analítico, de exprimirem ideias verbalmente e de resolverem problemas complexos.
A psicóloga educacional Jane Healy, que há mais de 10 anos tem vindo a alertar para os efeitos do uso excessivo dos media electrónicos na mente das crianças, admite que este processo induziu já alterações no funcionamento do cérebro: "Temos que aceitar e capitalizar o facto de as crianças de hoje serem portadoras de novas competências apropriadas a este novo século. A mudança que constatamos nas nossas crianças pode ser a parte visível de uma mudança na inteligência humana, traduzida numa progressão para formas de pensar mais imediatas, visuais e tridimensionais".
A ser assim, e é esta uma porta também aberta pelo estudo liderado por Christakis, o estado de desatenção em que hoje vivem tantas crianças e jovens seria, não o sintoma de uma doença, mas sim uma marca geracional, ou até mesmo civilizacional. O que tornaria insuperável o fosso já existente entre eles e o sistema de ensino prevalecente nas nossas sociedades. As escolas mais não estariam hoje do que a exigir-lhes o que eles já perderam, ignorando o que entretanto ganharam.
Mal ou bem, na turma do João, dois dos seis meninos com problemas ficaram retidos no 3º ano. O Bernardo, um deles, quase passava despercebido: "ausente", era rara a vez que conseguia acabar o trabalho que lhe era proposto. O João, que passou de ano, tinha problemas desde a infantil. De língua solta, irrequieto, dado talvez como hiperactivo pela professora, estava já a experimentar uma bica por dia, a terapêutica que antecede a tomada de comprimidos. Quase um "ás" em computadores, mas sempre distraído, perdendo todos os dias alguma coisa, esquecendo o que sabia ontem.
Um ano depois, o seu diagnóstico continua indefinido. Talvez um pouco hiperactivo, desatento, mas aparentemente com rendimento escolar. Sem grandes problemas relacionais. Qual é, então, o "seu caso"? Um neuropediatra e dois psicólogos depois, esta é a pergunta que continua a perseguir a mãe e talvez, por extensão, o seu próprio filho.
"Existem competências que estão a ser hiperestimuladas e não podemos esperar que sejam as outras que triunfem. Seria quase como se estivéssemos a trabalhar a musculatura da pernas para desenvolver os braços", sublinha Dulce Gonçalves, acrescentando: "Muitos deste miúdos têm uma óptima atenção dispersa, que é a mais estimulada hoje em dia, mas não têm uma boa atenção focalizada".
Serão tendencialmente mais receptivos a tudo o que os rodeia do que nós fomos, podendo estar assim mais aptos a lidar com a enorme quantidade de mensagens que inundam o quotidiano. Têm também, por exemplo, uma "enorme coordenação visual-motora, como o demonstra a sua perícia em instrumentos quase impraticáveis para os adultos, como são os game boy".
Mas podem ser quase incapazes de concluir uma tarefa que exija concentração e tempo, como muitas das que a escola lhes pede. Um desafio: "Estando nós a preparar crianças para uma sociedade multimedia, onde a informação cresce todos os dias, mais importante do que dar atenção é escolher aquilo a que vou dar atenção. Este é um aspecto que estamos a descurar. Devíamos associar cada vez mais a atenção à escolha".
A bola está ainda em grande parte no campo dos adultos: "Não podemos rotulá-los de patológicos por serem diferentes do que fomos ou por estarem a desassossegar o ambiente que os rodeia", alerta a psicóloga.
Também o psiquiatra e psicanalista Emílio Salgueiro "protesta violentamente" contra a abordagem predominante dos problemas da atenção como constituindo uma doença. "Seja uma crise societária, um momento evolutivo, mas por amor de Deus não olhem para as crianças como se estas fossem doentes, porque são pouquíssimas as que o estão, entre os milhões que não se conseguem concentrar". "Não conhecemos nenhuma doença genética que atinja a incidência desta", sustenta.
"A maior parte deles nem duas páginas seguidas consegue ler", diz dos seus alunos do quarto ano uma professora primária. Ao fim de ainda não duas décadas de ensino, deu por ela a só pensar na reforma, por já não saber mais o que fazer destas vagas sucessivas de crianças irrequietas, desatentas e irreverentes - a irreverência é outra das suas marcas.
Para o Vasco, que está no oitavo ano, o que a professora diz ser incapacidade é motivo de orgulho: "Eu não leio. Só quando sou obrigado pela escola. E mesmo assim..."
É ás neurociências que se atribui a explicação genética para os défices de atenção, sejam eles acompanhados, ou não, de hiperactividade. Em Portugal não existem estatísticas sobre o número de crianças que apresentam aquele sintoma, nem se sabe o número das que estão ser seguidas nas consultas de desenvolvimento existentes em vários hospitais. Assim, e segundo diz o neuropediatra Luís Borges, "No que respeita à incidência por cá, limitámo-nos a extrapolar as estatísticas a que se chegou a em outros países europeus: as desordens da atenção atingirão entre três a cinco por cento da população escolar, qualquer coisa entre 35 mil a 50 mil crianças, uma população que se pensa estar a aumentar", admite o neuropediatra.
"Embora exista um fundamento genético - diz- penso que o problema está mais no meio-ambiente que rodeia a criança". Ou seja, apesar de "geneticamente determinada" - como provariam os estudos que, por exemplo, dão conta de que estes distúrbios são cinco vezes mais frequentes em crianças que tenham um dos pais com a mesma desordem - o ambiente em que a criança vive pode ser o catalizador para o aparecimento do défice de atenção.
"O cérebro das crianças não está preparado para todos os estímulos que agora as rodeiam", diz, apontando como exemplo os muitos bebés quase recém-nascidos que acompanham os pais nas suas frequentes idas aos muito barulhentos e super-iluminados centro comerciais, muitas vezes já noite dentro.
O também neuropediatra Pedro Cabral, do Hospital São Francisco e Xavier, não tem dúvidas quanto à base genética da desatenção, que estaria comprovada, sublinha, em 80 por cento dos casos. O que não é certo, segundo refere, é que haja um "aumento real" do número de casos. Simplesmente o problema "passou a ter mais visibilidade", em grande parte devido ao mero facto de existir muito mais gente nas escolas. Impõem-se ritmos desadequados - 90 minutos por aula - e apresentam-se os mesmos objectivos - entrar na faculdade. O resultado traduz-se num insucesso escolar crescente, sobretudo entre as crianças com problemas de atenção. "Por outro lado, a sociedade está mais desorganziada, os miúdos mais entregues a si próprios, e tudo isto pode tornar mais visível o problema", acrescenta.
Mas Pedro Cabral encontra também na sociedade actual as condições ideias para o desenvolvimento destas desordens. "Transmitem-se sobretudo sinais muito efémeros, que se desvanecem rapidamente. A leitura de histórias foi substituída pela televisão, por histórias rápidas, muitas vezes quase em história", e que "não são de molde a criar conexões": "Para que as coisas fiquem nossas é preciso tempo", e é preciso também "um sentido para que prestemos atenção e mantenhamos a memória de trabalho", que é aquela que nos permite, por exemplo, lembrar hoje o que sabíamos ontem. Só que, tempo e sentido para as coisas são dimensões que, precisamente, não abundam nos nossos dias.
Emílio Salgueiro prefere falar de "evitamento" da atenção em vez de desatenção, porque vê o fenómeno como um processo dinâmico. "Não é não ter atenção como se esta fosse uma qualidade quantitativa, mas sim uma componente de um processo mais geral de evitamento" de que faz parte o que se designou por hiperactividde e a que Salgueiro chama o "evitar estar quieto". Para que exista atenção, são necessárias duas componentes: o interesse da criança e que esta se sinta segura. Quando isto não acontece, concretiza-se o movimento de evitamento e a concomitante dispersão da atenção.
A atenção é o que permite o aprofundamento, o estabelecimento do elo com alguma coisa ou alguém. Na ausência dela, tudo tende a ser superficial - o conhecimento e as relações com os outros. Segundo Emílio Salgueiro é deste modo que vivem imparavelmente muitas das nossas crianças . "Houve estruturas mentais que se deveriam ter formado neles e não se formaram", caso das que permitem o "pensamento mais complexo ou a capacidade de abstracção". Resultados do que chama a "sociedade acelerada" em que vivemos, também sobrepovoada de adultos em correria permanente, e ao que se diz, e sentimos, em perda acelerada de memória.
Há já bastantes anos nos EUA, e mais recentemente em Portugal e noutros países da Europa, passaram a medicar-se com um fármaco da família das anfetaminas - a Ritalin - as crianças que têm o que agora se chama por cá Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção. Em Portugal, o seu consumo aumentou mais de 100 por cento em apenas três anos e a tendência é para continuar a crescer.
Os seus defensores, como Pedro Cabral ou Luís Borges, insistem que o fármaco devolve às crianças as capacidades - maior performance da atenção e acalmia - exigidas por um regime não escolhido por elas, e onde só conseguem falhar, com o inevitável custo em sofrimento e auto-estima.
"É uma maldade não os ajudar com os instrumentos que temos à mão", frisa Pedro Cabral.
Ele e Luís Borges admitem, contudo, que o recurso crescente à medicação é também cada vez mais uma resposta à maior pressão por parte dos pais, por sua vez pressionados pelos professores. "Temo que possamos estar a tratar em demasiado. A tratar os sintomas sem ir às causas . Isso acabará por obrigar a uma reflexão", admite Luís Borges. Para Emílio Salgueiro e Dulce Gonçalves, tratar como uma doença este novo universo infantil é "um abuso". "Chama-se doença ao que é diferente, pacificam-se as crianças", que assim deixam de incomodar, sem que no entanto se consiga pôr a funcionar bem o que nelas está em falta, sublinha o psiquiatra.
Criamos as condições adversas e depois desresponsabilizamo-nos. É também para isto que Christakis chama a atenção: a culpar alguém pelo défice de atenção, os culpados não seriam os pais nem o ambiente que estamos a oferecer às crianças, mas sim a genética - um acidente imprevisível.
É precisamente tal abordagem que é posta em causa pelo estudo do Child Health Institut. Para já, a questão foi reenviada para a comunidade que todos constituimos. Mesmo existindo uma componente genética, começa a ser claro que algo no ambiente leva à irrupção da desatenção. E se as nossas crias são já por causa disso estruturalmente diferentes de nós, fará ainda sentido insistir na medicação? Com que objectivos?
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(Magritte)/"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW
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