"A esperança em si"
«Eram onze da manhã. Ele acordara há pouco, a noite tinha sido longa. Lembrava-se claramente que um estrangeiro de nacionalidade indeterminada lhe tinha perguntado num inglês arrastado “Are you a gambler?” ao que ele tinha respondido “Well, I don’t know, maybe I am” completando logo a seguir “Wait, yes I am”. Isto não lhe proporcionava nenhuma reflexão particular, tudo fluía dir-se-ia que num ritmo pré-determinado. Dirigiu-se à casa-de-banho.
Num outro ponto da mesma mecânica e impessoal cidade ela tinha acordado às seis e meia, preparado o pequeno-almoço, acordado os filhos, tinha-os arranjado para a escola, arrumado a casa, feito as camas, tomado a bica e pensava agora afincadamente no almoço. O que cozinhar?
Ele queria que se f.odesse Hume. Relação causa-efeito sim senhor. Até pode ser que o sol não nasça amanhã mas se não o fizer será devido a uma causa. Isto lembrou-lhe a chegada da sua namorada que passaria como habitualmente durante a tarde.
Enquanto descascava batatas pensava naquele actor da novela e que o seu marido podia ser mais como ele. Aliás tinha por hábito pensar nele quando o marido se decidia, geralmente apenas quando estava bêbado, a cumprir o dever conjugal. Como qualquer dever, era penoso.
Como sempre estava frio em casa e a água quente do chuveiro foi como uma bênção. Amoleceu-o ainda mais. “Em tempo de paz o guerreiro ataca-se a si mesmo”. Este aforismo de Nietzsche tinha-lhe sido recordado por um filme visto antes de dormir. Que se f.oda a paz e já agora a guerra. Já só existiam pazes podres e guerras sem personalidade. O ódio salutar tinha desaparecido e com ele a honra. Uma guerra onde não se vê a vida a abandonar os olhos do inimigo não é uma guerra.
Pescada ou bacalhau? Bem, de qualquer modo tinha ainda de sair para comprar feijão-verde. Cozia ovos ou não? Sim, os filhos gostavam. No rodapé da televisão um qualquer emigrante mandava saudades e um abraço aos pais. Não falava com os dela ali bem mais próximos há mais tempo possivelmente do que aquele emigrante a milhares de quilómetros de distância. Aproveito e compro tabaco, pensou ao sair.
Enquanto se secava lembrou-se que não lia há imenso tempo. Vestiu o roupão e foi à sala buscar O Mundo como Vontade e como Representação. Regressou à casa-de-banho, pousou-o no lavatório e abriu-o à sorte. Tapou o ralo, abriu a torneira e enquanto espalhava a espuma começou a ler. “Eis-nos portanto enganados ora pela esperança em si, ora pelo objecto da nossa esperança”. Hum… “A felicidade reside sempre portanto no futuro, ou ainda no passado, e o presente parece uma pequena nuvem sombria que o vento empurra por cima da planície soalheira : diante e atrás dele tudo está claro; apenas ele mesmo não cessa de projectar uma sombra. Assim é ele sempre insuficiente, enquanto o futuro é incerto e o passado irrevogável”. Um pequeno corte no sítio do costume, mesmo por baixo do queixo. “Esta ilusão e esta desilusão persistentes, como também a natureza geral da vida, não parecem elas criadas e calculadas em vista de despertar a convicção de que nada é digno das nossas aspirações, dos nossos trabalhos, dos nossos esforços; que todos os bens são coisa vã, que o mundo é insolúvel, que a vida é um negócio que não cobre as despesas - e tudo isto para que a nossa vontade dela se desvie?”
A luz estava esquisita. Não havia feijão-verde. Acendeu um cigarro, colocou-o no canto da boca enquanto lavava a faca para não lhe ir para os olhos. Cortou-se. Mas foi um corte doce, gostou. Decidiu tomar um bom banho de imersão.
Ouviu-se um estrondo seguido de um breve grito. A vizinha chamou a ambulância mas nada havia a fazer. Tinha o seu melhor fato vestido. A sua namorada apenas encontrou um bilhete dizendo : “Nunca te amei”.
A água estava vermelha. O filho mais novo que a encontrou ainda não falou depois disso. Deixou somente uma pequena nota na porta do frigorífico dirigida aos filhos : “Amo-vos”.»
DeusExMachina, in Bibliotecl@ do Sapo
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