29/04/04

"Prosseguir sempre e muito mais porque a vida é sempre pouca."

"Como então?

Como se desenvolve então o virtuosismo da escrita? Como se pratica então "o solo" musical das palavras? Diferente de ter um violino nas mãos, será sempre este mar invariavelmente branco a desbravar. Coisa de navegador afoito e compulsivamente solitário. Inexistência de certezas melodiosas, partituras prévias ou receitas prescritas. Cabo da Boa-Esperança arquitectado em sonho para ser dobrado em esforço. Momento incerto de partida e chegada sempre indefinida. Percurso de garras em riste num vôo sem escala para acalmar a aflição e vencer a vertigem. Naufragar-se propositadamente para prosseguir náufrago de bóia. Descrever piruetas de execução impossível com a lógica cultural que nos deram. Avançar convicto de que só a perdição existe, serenamente. Demais perenes são as maneiras de brilhar ou de conquistar a fama. Incomensurável, no entanto, este inflamar do coração no que se queira abarcar. E saber guardar cerimonialmente o respeito pelos mestres idos. Consciência exacta dos poucos milhares de anos de História civilizacional. Sabedoria a rebentar pelos neurónios dentro, num desaguar sereno pelo ser fora. Ritual de múltiplas formas de estar em congregação com almas dispersas que não tenham passaporte com visto ou embarque previsto. Birra persistente de criança entediada em peça de teatro de gente burra e crescida. Vontade de dizer sempre não, porque a tendência geral é concordar sem razão balbuciando sim senhor. Gritar em silêncio palavras de amor, deixando o ódio ao cuidado das bestas, das fanfarras e dos fantasmas. Ou quebrar as palavras com gritos de liberdade se o silêncio tiver sido calculado e imposto. Ricochetear a indiferença, a apatia, o medo e a nostalgia. Tocar castanholas imaginárias no múltiplo fandango diário. Saber fazer estalar a paixão em todo o instante porque o frio não é conforme com o calor humano. Marcar um duelo de morte com um velhinho trôpego só para o mesmo sentir de novo a chama da vida. Fazer uma festa no cabelo a um daqueles imbecis que pensam que somos parvos. Encher de beijos quem não se sinta amado, mesmo que depois se tenha de lavar a boca. Aguentar estoicamente a estupidez, insurgir de melaço a violência, sorrir em amarelo mortífero à maldade, resistir para recomeçar e recomeçar para resistir.
Prosseguir sempre e muito mais porque a vida é sempre pouca.


» embasbacado, 2004-04-29 (16:21), in PASTILHAS
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Por vezes tenho inveja de quem escreve...de quem escreve o que me vai na alma...talvez não seja bem inveja, talvez seja antes frustração porque não me sai, assim, a escrita...anda tudo a bailar cá dentro quase tão perfeitamente e, depois, quando perante as teclas (e já nem falo na caneta e no papel)...pufff!, tudo me parece ridículo, tudo se esfuma, ou torna banal...Depois...depois quando leio o que quereria ter escrito reconcilio-me comigo e com a escrita! Que importa que outros digam o que quereriamos ter sido nós a dizer?

Por vezes tenho inveja de quem escreve...outras não! Se quem escreve se sente como eu...para quê escrever então? Um dia desisto de escrever...como desisti de ler! Juro!

...e depois vou para o inferno...;-)

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