16/12/05

Murcon: Directos ao corac,o.

Murcon: Directos ao corac,ao.

«Receio que a velhice também seja isto - refugiar-me nas palavras para esconder a preguiça que torna difícil as barricadas, mesmo simbólicas. Saber-te nelas enche-me de orgulho e receio. Porque me rejuvenesces e afastas ao mesmo tempo.»


RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,

pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,

que possas levar ao lume do horizonte;

depois mexe o azul com um resto de vermelho

da madrugada, até que ele se desfaça;

despeja tudo num bacio bem limpo,

para que nada reste das impurezas da tarde.

Por fim, peneira um resto de ouro da areia

do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.

Se quiseres, para que as cores se não desprendam

com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.

Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez

ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre

na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor

até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.

Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que

possas distinguir entre uma e outra.

Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,

iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,

algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice
(Portugal, 1949).

Poeta, ensaísta, crítico literário e romancista.
Autor de livros como Lira de Líquen (1985),
Meditações sobre Ruínas (1994),
Teoria Geral do Sentimento (1999),
e A Árvore dos Milagres(2000).

1 comentário:

Alberto Oliveira disse...

...há mesmo muita gente que não gosta de cozinhar...